EST ANQUE
Converso comigo mesmo.
Não sou maluco.
Converso com versos.
Não sou poeta: tento.
Tanto tempo com tantos segui,
sonhando sempre sonhando.
Mas há o tempo em que sigo só,
não sei por quê.
Será que não consegui, talvez,
um certo sossego
de sonhar em paz?
As barreiras são transparentes,
quando se é cego.
O futuro é tão presente,
quando se é sonhador…
O presente é tão passado,
quando se é súbito.
E o passado é tão presente,
quando se sonha a dor.
Sigo sozinho.
Nenhuma mão suja
a me acompanhar.
Nenhuma palavra sórdida
a sondar meu caminho,
meus ideais.
Carrego um sorriso travado,
um choro contido.
E a certeza sóbria de que seria contigo
o meu prosseguir.
Abandonaste
a meta.
Como a pedra, sólida,
estanca n’água.
O resto… mágoa.
PORTA-RETRATO
Nos mares estancados
há ondas que não quebram
em praias virtuais
que existem belas.
E o sol, estupefato,
brilha sem brilhar,
no céu azulrosalaranjado
do poente sobre o mar.
O poente sobre a ponte
Rio-Niterói,
o poente do poeta,
o poente de sempre,
o poente de repente
vira para sempre poente,
e é bonito que dói!
E os amigos, abraçados,
sorriem sem parar:
estão juntos. São amigos;
seus braços não se cansam,
não sentem câimbra nas bochechas,
a cerveja não esquenta,
a música – que pena – é inaudível,
as bocas pronunciam algo que não lembro,
fazem bicos, embora nem sejam franceses;
mas, que importa?
Importa, sim, aquela alegria,
alegria tão efêmera…
agora transformada em: esta alegria.
A geladeira ártica
do tempo é a câmera
fotográfica;
o gelo é a fotografia.
O CALAR DO CALOR
Não sente que a fala
ausente
implode na gente um tremor cardíaco,
um calor contente,
um ranger de dentes…
qual um trem expresso trepidando os trilhos,
o nascer de um filho,
um falhar terrível
de articulações,
de entendimentos,
de momentos,
um… aumento
de… pudor?
Sente?
Sinto.
À mente eu minto,
esquivo-me.
Mas enfraqueço.
E arquivo-me.
Esqueço.
Ah, a paixão é um pé
e a palavra, um… um calo.
Por isso, não falo.
Calo.
VERBORRAGIA
Há um mistério bonito
em ser o que sou
e não saber o que sou.
Tudo que vivo, tudo que ouço, tudo que vejo
é um ir e vir de coisas, seres, experiências,
é movimento.
Não sei o que sou porque não sou o que,
sou oco.
Ser não é ser, mas estar
sendo, ser
estando.
E serestando as pessoas som,
porém soo diferente,
pois é preciso eu não ser eu
para saber o que sou.
Portanto, ser é estar: to be.
O verbo em mutação conjuga a liberdade
de expressão.
Se no princípio já era o Verbo,
o presente é o meio
que no futuro será fim.
Quero being; nunca serei-a.
Nunca serei,
nem nunca seremos:
o Nunca será.
_________________________________________
Eu não pedi a pureza plácida
digna dos deuses comuns.
Eu me fiz.
Eu me faço.
Eu: Mefisto.
Mefisto-me?
Visto-me!
Firo-me. Fire.
O meu poder é flácido,
digno dos dogmas,
magma dos males.
Eu sou a fatia de mim mesmo.
Sou a faustia de mim mesmo.
Sou a ênfase do eu,
do eu fui em fase de eu sou
do eu sou em face do que sempre fui.
Eu sou o que sou e sou o que já fui,
e sou ainda o que ainda serei:
sou a somatória do ser presente
que soa em todos os tempos passados e futuros.
No meu tempo eu sou rei: mando eu.
E se quero ser rei, sou.
E se o quero, serei: eu posso.
Meu tempo passa e eu contemplo;
meu templo é oco e eu completo.
Do ser repleto eu sou o osso,
o fóssil, o fácil…
um poço.
MUNDO É GERÚNDIO
Mundo é gerúndio.
Girando
em órbita e no eixo inclinado de sua relatividade,
entrega os homens à velocidade,
misturando-os entre si.
O globo refletindo, centripeta-se;
mas desentende o que é, resistindo:
centrifuga-se.
Segue
cumprindo a imutável lei universal
da mutação.
Um curso cego para uma esfera girando,
globo ocular incapaz de enxergar-se.
Não cegue quem que não te segue,
planeta mudo,
silenciando teus mistérios e negando respostas.
Calas em desespero perguntas ao ar.
Ecos atmosféricos.
O mundo é gerúndio.
Ele traz, leva, tem consigo.
É aquele que faz.
O mundo é gerúndio.
Girando.
Gerando.
Mundo de atritos, atribulado,
deslizando em elipse no vácuo.
Cria tensões, dilúvios, catástrofes,
todo tipo de desconstrução e tragédia.
Expele-se, segrega-se, sangra.
É pérola e ostra, obra e artista.
Compondo o que é, dramatiza-se.
Encena seu trajeto interno,
registrando-se.
Gere em ritual: dança, canta.
Dança mundana e divina,
música em clave de Sol: dó de si.
O mundo é gerúndio.
Girando.
Gerando.
Gerindo.
O mundo é gerúndio.
Epíteto: Sendo.
ANAMORADA
Escrevo para a namorada que não tenho:
a figura utópica platinada,
a mulher dourada, adorada e lânguida;
a alegria onírica e nublada, certeza frágil
imprecisão.
Poesia errante que consola um nada que há em mim.
Efêmero é o ócio em que a concebo deusa.
Infinita é a ponte que nos separa.
Há um abismo, sei, um vale imenso,
pomar de metáforas – algumas verdes, outras podres –
e um cavalo alado para percorrê-lo, também.
Escolhi a ponte. O porquê não sei…
Remei com versos plúmbeos
e naufraguei no mar da liberdade.
Saciei a sede num copo d’água. Era fino vidro:
não se quebrou, cortou-me o lábio.
Caco de sangue coagulado
fere mais do que cicatriza.
Tudo isso são bobagens, frases ao ar, palavras aleatórias…
Tal retórica de nada serve:
brincadeira de mau gosto.
Dou meu rosto à palmatória e a mão à poesia:
façam deles o que quiserem.
Há metafísica bastante para encher seringas descartáveis.
A mulher que não tenho é a Arte, e seus cabelos são longos.
Se oferece nua e seu corpo é amorfo.
Um balé de olhos e ouvidos passa por mim e danço;
as pernas do entendimento são paralíticas,
mas o que se move é intuitivo e sólido,
fossilizado em mim.
Tenho uma deusa e tive algumas namoradas.
Em cada uma, diferentes filigranas.
Muito amei a todas, mas
penetrar na Arte exige ereção de ideias…
Calma: nenhuma ansiedade.
A melhor conquista e noite são demoradas.
LIVRO
Queria me ver livre das páginas amareladas
e de todo cheiro de conhecimento novo
em forma de pó.
A embarcação de papel me leva
ao mundo abstrato de imagens em ação,
mundo leve de formas pesadas.
E a concretude se desdobra em sonho,
o onírico se esvai em letras…
a multiplicidade latente de sentidos
altera-se em lápides esculpidas à mão,
unilaterando todo um universo.
Literatura.
Lápis em punho destruindo em signos
o insignificável.
Fui moldado às folhas mil,
minha capa dura não se dobra, move-se
apenas o suficiente para abrir caminho
a uma tênue cicatriz de ideias.
Folhas falhas, filhas de um sentimento fútil
de aprisionar palavras, antes
pensamentos, folias…
Fui moldado e sou retangular.
Reta angular. Tijolo.
Pa – ra – le – le – pi – pe – da – da
na vidraça do ser.
PURGATÓRIO DE PALAVRAS
Padeço.
O mundo lógico impõe seu preço: palavras.
Quantas vezes não morremos feridos por elas?
Sílabas tônicas marcando o ritmo de nossos passos,
cartas marcadas num jogo de métrica. Verso,
agora verso o teu inverso, manejo
a tática de reverter-te, tateio
por entre as farpas paroxítonas, reviro
arames fortes com voltas várias, padeço
nas quatro linhas do mesmo cárcere. Seu servo
eu sou. Escravo.
Escavo
uma saída com a mão
direita, motor de ideias articuladas,
grafando um túnel na escuridão do caos;
e quanto mais penetro, mais me perco:
o profundo é vão.
Palavras:
vocábulos lavrados no palato do inferno,
vibratos vacilantes na garganta do diabo,
magma purgando das entranhas da ideia,
chagas de quem chora a incomunicabilidade.
ELE E ELA
I. Eles
Belo é ler-te os lábios sibilando longas linhas
de um livro em português:
lindos como as pétalas da flor,
da última flor inculta e bela,
deflorada pelo célebre Camões.
Lanças uma sílaba no ar,
calas no silêncio entre as falas,
que não falas: silencias em voz alta,
simulando beijos modelados pelas pálpebras
da tua boca de quem lê.
Olhos trocam flertes com as palavras,
libertando-as das folhas que enclausuram
a libido da leitura.
E, lentamente, língua e letras se misturam
numa cópula declamatória.
II. Análise
Belo é ler-te os lábios sibilando:
lanças uma sílaba no ar,
olhos trocam flertes com as palavras,
libertando-as das folhas;
calas no silêncio
entre as longas linhas de um livro
que enclausuram a libido
das falas que não falas:
silencias em português.
Lindos como as pétalas da flor,
da última flor em voz alta,
simulando leitura.
E, lentamente, beijos
modelados pelas pálpebras, língua e letras
se misturam numa inculta e bela
deflorada cópula declamatória
da tua boca de quem lê pelo célebre.
Camões.
III. Síntese ou título
ELE E ELA
L E ELA
ELE ELA
ELELA
EL E LA
LELA
LÊ-LA
ELEA
ELE-A
L A
LOS ANGELES
LOSANG
ELES
MUDO
Eu mudo.
Não calo aquilo que emudece em mim.
Erram meus pés o colo do mundo,
eram de barro e jorravam terra no chão.
Hoje o que são?
Pés à paisana, asfálticos,
protegidos do negrume urbano.
Que toque os pés a pele da natura,
lave-os de argila e eleve às copas
o adubar-se do silêncio grávido
de um grito:
o de ser humano.
O QUE NÃO MORREU
O que não morreu
está por aí
a perambular
a insistir
e a nos convencer
de que não morreu.
O que não morreu
então permanece
mesmo se parece
que já foi demais.
O que não morreu
a si contraria
aos outros engana
Um fogo sem chama
um mato sem guia
um morro sem pico
um berro sem grito
um quarto sem cama.
O que não morreu
edifica
ressuscita.
Assim somos nós
e estamos aqui.
Pois o que não morreu
merece estar vivo.
TEATRO
Quem és tu que distante me tentas
tanto quanto eu tento me livrar
de louvar-te? Quem?
Quero me livrar de ti!
Sem ti estou
em ti. Estou só.
Só em ti estou só e em mais ninguém.
Somente te deténs em me ter
solitário.
Mas meu amor se derrete por quem
me retém. E me tens.
Portanto, amo-te.
________________________________
Estou atento, porém.
(um tanto tonto também)
Se te contento, está bem;
se te destrato, contudo,
desandas:
sentimentos contidos
ou em descontrole
são trôpegos;
evitar cultivá-los, no entanto,
é mostrar-se hermético,
antes, sem tato, sem ética.
Tolo. Imaturo.
_____________________________
A arte é sintética, sim.
É a crosta dos fatos
talhada no tempo,
as gotas memênticas decantadas,
a escritura filtrada da História,
é o canto pertinente do cogito.
_____________________________
Então nos resta calar.
E escutar, assim, o rumor
que brota dentro de nós,
artistas, nós
crianças crescidas
da trupe humana.
Nosso mundo é o Teatro
(não o teatro-do-mundo,
dos títeres românticos,
nem o mundo do teatro,
das vedetes tresloucadas),
essa fronteira entre lugar nenhum
e a concretude impactante.
Teatro, este muro suave
entre o ser e o não ser.
Teatro, esta liberdade no curso dos fatos,
esta comédia sem graça,
esta desgraça divertida,
esta tragédia necessária.
O lugar-de-onde-se-vê
o mundo,
observatório do Homem.
Teatro: palco da Humanidade,
espelho rachado do que somos.
____________________________________
Tu me tens e desisto de afastar-te.
Aceito a solitude de perguntas que jamais,
jamais terão resposta jamais
e consinto que me tenhas
instrumento de tua arte.
Tua arte da inquietude.
AMORE
Amor,
doce miragem em que me perco.
Luar de noite em claro.
Em teu seio me retiro
daquilo que não sei,
conforto-me de um mundo grande.
Em teus braços sou mais forte
pois sou pleno.
Se o tempo fosse eterno,
em ti eu viveria…
Nos lábios um suspiro
insiste em te beijar:
O amor é como um sopro
– respire! Não pare!
Seja-me como sou-te.
Sejamos.
Eis a liberdade.
VÃO-SE OS ANÉIS
Duelo:
o anel e o dedo,
um ringue
que a mão finge.
Na palma,
as linhas formam
a renda
do tempo.
Rugas
traçadas por quem?
A mão humana
que busca
ou
que adeus acena?
Certeza
que a escrita tangencia,
palpite
que lateja entre as falanges,
escorre e nos escapa.
Areia da dúvida.
O gesto
entre o aplauso e o tapa
é o estalo
de entregar o rosto
estilo
de empenhar o gosto,
ter pulso
e empurrar-se ao alto.
Punho e unhas.
Minhas armas.
O resto,
um dedo em riste.
Se trágico ou ridículo,
desdenha-se o risco.
Se o braço forte
é triste,
importa é que
lutar preciso.
Celebro em luto
o tato que persiste.
A FLOR
Além do muro
a flor aflora
bela
porém oculta.
Por uma porta
ou janela
procuro a flor,
desejo tê-la.
Mas não há fresta
que ligue
a cor ao olho,
o lábio à pétala.
Prefiro o pólen
que inebrie
o espinho
que me corte,
a ser sozinho
na rua
a vagar
pela sorte.
Jardim fugaz.
Éden?
quimera
de bem-me-quer.
O ELIXIR
No exílio de mim,
a desmedida necessária,
dose báquica do não-ser,
ausência outra da vontade.
Sucesso e glória ardem lá fora.
O alcance é nada,
um dardo cego,
um gotejar dos cântaros
do vão,
diluída ambição
no pingo do descaso.
O vinho nobre do âmago transborda
cálice obscuro a abrir-se-me,
eclipse,
sede do deslumbre insaciável.
Ser duplo em êxtase, apaixonado,
querer sem rumo ou predicado
desfrute lépido,
conhecimento avesso do mundo.
Beber filosófico:
no ingerir decanto
o olhar curtido
do encanto.
Encontro o outro.
Troco.
Toco a intangível
falta permanente.
Abandono inconsequente ao ser
sozinho ser para vir-a-ser.
Devir de mim mesmo.
Dono do eu.
DESCOMPASSO
Moça, desculpa: não sei dançar.
Meus pés são ágeis pra fugir, apenas.
Que passa que não acerto o passo?
E piso o pé – ui! – e piso em falso,
só dou vexame no salão…
Moça do céu, vixe, que as pernas chegam a dar nó!
Se não há dança pra dançar só,
como fazer pra te acompanhar?
A orquestra para e sigo em frente,
escorrego e tombo – não há quem aguente.
Atropelo mútuo no baile da vida.
Estamos na pista e não temos par.
A música chama para dançar, mas
se vou, não danço,
se danço, erro.
A dança do amor, enfim,
é ridícula.
Bela.
Mas ridícula.
TEMPO QUE FOR
Descobri alegria.
Alívio por saber que havia,
oculta que fosse.
Do fosso da alma uma brecha
improvável rasgou
e de lá
da lama imunda
o mundo se mostrou outro.
Belo que seja.
E, sujas, as mãos escavaram pedras
negras de limo
– as unhas rotas como cascos.
A nesga de luz invade a treva,
em desvantagem a vence.
E vê-se a vida com os olhos
de retinas virgens: o verde,
o azul primário e o profundo,
a terra.
E o ar rebenta fresco no peito.
Respira-se!
Véus já não há. Vejo. Ouço. Sinto.
Certezas não tenho.
Sincero comigo digo:
“Espera, Rodrigo. Confia.
Ser apressado dissipa
essa brisa pueril.”
Difícil arte esta: crer
apesar das lembranças.
Mas, alegre por enquanto,
aguardo o tempo que for
pela boca em flor
desabrochando um beijo.
O teu.
NUA E CRUA
Na guerra do amor
não há culpados,
mas feridos.
O jogo do amor
não se perde nem se ganha.
Joga-se apenas.
É que no amar não há lamentos,
erros,
penas,
acertos.
Amar é sem certeza,
entrega cega.
O amor não impõe regras,
não cria jogos, nem faz guerras…
amor sem logos.
Nele há Eros, não Áries
Vênus, não Marte
servos, não mártires.
Aqui leões matam cervos
e devoram sem dó.
Pois se oferecer
em sacrifício
é não sofrer.
E só.
TEMPORAL
Desisto, então, e te deixo.
Sem despedidas,
sem último beijo.
O ar imóvel e abafado prediz
a chuva que virá.
Temporal.
E ruas inundarão, árvores vão cair,
a cidade será caos com o dilúvio.
Pessoas vão morrer (ou se salvar por um triz).
Mas não eu,
nem você.
Nem ninguém: lágrimas não matam.
As coisas vão mesmo esfriar, esvanecer
e com o tempo serão lembranças, só.
Um tempo de nos evitarmos.
Um tempo para ouvir o apoio de amigos.
Um tempo de nos esbarrarmos na rua
– tempo de formalidades, aquele sem olhares cruzados,
sem toques no braço do outro, sem sorrisos charmosos,
sem abraços apertados.
Em outros tempos, passamos por lá
de mãos dadas, sonhando.
O suspiro se foi e agora é o ar abafado
nos fazendo suar frio num calor desses.
Logo o tempo vira e a chuva virá,
intensa mas sem ira.
Sem pena irá lavar a mesma rua de água,
depois lama
e folhas e lixo e fezes.
E o que um dia sentimos jazerá
soterrado sob os pés
de mil homens e mulheres.
JÁ, MAS
Quantas amarras, mulher,
te impedirão de ser minha?
Quais?
Pois não há nada de mais
em amar assim.
Diz o teu sim
com a boca mais doce que beijei.
Vem comigo num abraço
cavalgar perdida
o lugar algum dos sonhos.
Não vês?
O destino é um bufão cego
a rir de nós. Porém
pra sempre grato serei
ao desencontro de te achar.
Gira o mundo com teu sopro,
Amor.
Dissipa a bruma da incompreensão
que nos divide da delícia oculta
do outro.
Agora fecha os olhos e conta.
Te mostra pronta pra mim.
Não há de ser nada, não há
ninguém contra o teu já.
Não põe na história esse fim.
DEVIR
Vem comigo, querida, enfrentar o mundo.
Estamos juntos, somos fortes.
Mil olhos nos veem, mas não sabem
o que se passa sob a pele do óbvio.
Vem comigo, querida, ser feliz,
verter lágrimas, lavar os dias
com o frescor de estar vivo.
A vida, antes de você, apenas passava.
Hoje, ávida, floresce em meio às horas,
contente e incontida em si.
Vem, querida, comigo ouvir
o cântico dos cânticos,
compô-lo novamente na melodia
ofegante de nossos peitos,
dois pomos rubros.
Vem tornar macio o correr do tempo:
mel e pétalas, a cútis do ócio,
derme que escorre
por entre os ossos do eterno.
Cio suave, estro do ser.
Vem, derrama esse ópio, essa ambrosia,
esse anestésico, alegria,
elixir que contagia,
esse dopar-se sem torpor,
esse algo, esse tudo, esse amor.
Transborda, querida, e vem
comigo porque eu te amo,
te amo como ninguém.
RIZOMA
Eu quero beijos e a incerteza
de um futuro.
O que está por vir, há
– e isso basta.
Do tremor houve as quedas,
as quebras, os cacos.
E com eles, os cortes.
E as colagens, as curas.
Mosaicos do que fôramos,
lembranças dançando na memória.
Assim somos: rizomas,
em fragmentos sendo,
dilacerados, loucos, santos
nas sendas da paixão.
Nossa vida é esta eterna sinopse.
Quero escrever-te em mim,
emaranhar-te no meu destino.
O amor é isto: um início sem fim.
Um descaminho.
Aqui nos achamos e nos perderemos.
TERRA
I.
Esta terra que tudo dá
é a terra santa que me mantém.
A terra estéril da seca é a mesma
que no cio da colheita
semeia o ciclo das estações,
fecundando sonhos e esperanças,
germinando choros, frustrações.
Eu sou filho da Mãe Terra, e muito mamo em suas tetas
sujas do barro que alimenta vermes
e da areia que move ampulhetas;
mamas rijas como as pedras em que tropeço,
e que jorra o leite escuro
de suas glândulas mais íntimas.
Terra ferida e marcada por cicatrizes geográficas,
que recicla a erosão em paisagens verdejantes,
e faz purgar a vida que perdura tempos, águas, lógicas.
Terra que eu piso e me dá diamantes.
– Ó, deusa Gaia,
virgem, gaja, gueixa…
mãe de todos os seres e não-seres,
aqui soluço uma guaia,
mistura de mágoa e queixa:
em teu seio vou estar
até quando me comeres!
II.
É em Minas que vivo Gaia plenamente.
Em Minas estou repleto de Gaia.
O árido e o fértil são polos, extremos
que temos em nós e em Gaia.
Gaia: complemento do Céu, e não seu oposto.
Nada vem de Gaia
porque
tudo de Gaia vem.
Gaia dá de tudo: dádiva
de opostos e complementares.
A ambiguidade, sendo derivada
da diversidade, também é
atributo de Gaia.
E a repetição.
A repetição também o é.
E devido à sua diversidade
e repetição,
Minas é um tributo a Gaia,
ou, simplesmente, dela dádiva.
Tal qual a poesia.
III.
E assim encerro:
ser maduro é estar verde para a eternidade,
ou, quem sabe, podre para o fim.
O que faz a planta nascer e morrer
é o que há antes dela:
a terra, útero da existência.
E no entanto, ela – a terra
– não morre junto com a planta.
A cinza não é mais cinza, mas argila,
quando a vida come a morte,
que comeu a vida sobre a terra.
A morte é o húmus que aduba
e a semente verde é o esperma.
Terra:
ávida de morte,
grávida de vida.
Ser maduro é estar apto a ser colhido,
e a colheita exige uma dureza maleável como o solo:
madureza.
TREVO
Poucas coisas, raras.
De todas (cantos,
risos, prantos,
copos, pratos, taras…)
uma, e somente uma,
é graça e sorte
e leve e forte.
Somente uma,
coisa rara,
no meu mundo é
você.
MOVIMENTO Nº 7
: Cansaço.
Nado contra,
nada faço.
Nada fácil.
Desassossego que persegue,
que persiste,
desencontro em trânsito,
tráfego fatal,
declínio, desastre, clausura.
Arte da inércia.
Cláusula de desistência.
Inépcia de ser.
Des-ser.
Não ser.
Descer ao Hades,
ao fundo do poço.
Aniquilar-se.
Anular-se assim.
Não-sim.
Fim
do túnel.
Findo percurso.
Finitude.
The end.
Nada.
Que nada!
Recurso.
Remendo das Moiras.
De novo sendo.
Nascendo das cinzas,
Fênix.
Tânatos derrotado.
Apologia apolínea:
luz, beleza.
Apogeu.
No topo, eu.
(Allegro
– ma non troppo)
Totem.
Zênite.
Zen.
Almejo.
Alço.
Alcanço.
Só eu comigo.
Só sem cansaço.
Só
sigo.
Consigo.
Go.
Gol!
:
CONFISSÃO
A hora morta
em que as luzes silenciam
é quando gritam pavores
bem dentro de mim.
Assim convivo com o temido
e calo aos poucos o faminto
que me habita,
o ser voraz que move a vida.
Qualquer delírio assombra,
Mesmo o mais ínfimo.
Estou náufrago de esperanças,
estupefato em apatias.
E a vida passa.
Porém, no fundo íntimo do abismo,
além do ego e daquilo
que turva, fere e deforma,
existe um farto que grita
não de temor,
mas de gana.
Uma centelha que clama
por incendiar-se.
Esse desejo da alma,
esse saber-se infinito
espera inquieto e me devora.
Essa latência do grito
é desde sempre, é sempre agora
é um atraso que não tem hora.
Este sou eu, pleno, inconformado
por parecer o fraco que chora.
DA TRISTEZA
A tristeza é esse esvaziamento
bem dentro da gente,
um ruir que abre espaço
pras coisas internas.
E o olhar contempla,
intentando assimilá-las
e completar a gente
do que vem de fora.
Não quero ser
um poeta da tristeza,
mas entendê-la,
revelá-la bela.
Porque quando se está triste
um senso novo se abre
e percebe
a oclusão do existir,
a fugacidade intermitente,
as cores desbotadas,
ancestrais,
de que tudo é feito.
AHORA
Apesar de mim, um passo e outro adiante
a pisar assim a incerteza dos vãos.
Apesar do fim, um início confiante.
A pesar um sim, no deserto de nãos.
Vou embora porque sim.
Vou, embora haja um fim.
Vou lá fora, hoje, assim.
Voo agora para mim.
Posso um passo,
posso outro.
Fora, passo
Dentro, um poço.
Um fica
Um passa
Um piso
Um passo
Um salto
Um poço
Um voo
Um pássaro.
No vão
eu vou.
Deserto
adiante.
Um centro
incerto.
O sim
e o não.
Em mim
um outro
assim
assaz
Passada
a hora
Agora
já(z).
DÁDIVA
Conceber é também ser
um pouco Deus.
Requer um zelo sábio,
desapegado,
de entrega,
que só os plenos sabem.
As mães são plenas.
Levitam como plumas
mesmo nas tormentas,
deságuam lágrimas por nada
e ainda assim não secam.
As mães são esses seres
fortes e suaves,
provedoras abundantes,
fontes de afeto e consolo.
Só nos recônditos das mães
a gente encontra isso:
o sossego mágico da gênese,
silêncio grávido de caos
que é a vida em seu começo.
Ouçam!
Uma mulher agora é mãe.
Nela há mistério e comunhão,
frutos de um encontro.
Mulher sagrada.
Abençoada.
Dentro dela
uma vida se segrega,
sangue do seu sangue,
sopro no seu ventre.
E, assim,
viver
já não é como antes…
LEMBRANÇA
Não use a memória
para lembrar uma história
que mal começou
(ou começou mal)
Tenha na lembrança
sempre bem fresco
esse tesouro incontável
que é a vivência
– isso que olhos e ouvidos testemunham
e recortam do caos
ou resgatam boiando
no mar da incompreensão;
o que foi arruinado pelo tempo,
mas ruminado nas retinas;
o que maturou de ecoar na consciência,
o que fendeu a pele e a alma em cicatrizes
(ah, a sabedoria da cicatriz:
transmutação da dolorosa ferida
em carimbo na bagagem de vida)
Faça da memória crisálida da experiência,
alce voo
para além dessa perspectiva mesquinha
do rancor e da mediocridade.
Faça jus ao que já era, ao que jaz,
e não faça da lembrança um criadouro de defuntos,
deixe os fatos que morreram
descansar em paz
e lembre dos idos
sem a vivacidade corrosiva da mágoa,
mas apenas com a cor desbotada
que devem ter.
O sol voltará a brilhar
só se
antes de tudo você
aprender a se amar.
ESCONJURO
De lápis-lazúli
é a tua lápide,
ornamentando
o teu destempero.
Teu ócio jaz
com a vaidade
que corrói as horas
com pompa vã.
Nenhum afeto
adere à superfície
porosa
do teu ego.
Retira a tropa
da arrogância
do santo campo
de batalha.
Regride à tua
infelicidade,
regressa ao nada
que és. Recua!
Encontra a verdade
que paira sobre ti:
Repara a morte
que te sorri.
Se tudo passa,
não há quem possa
salvar-te, pois.
Repousa em paz.
A GURU
A guru profere
uma palavra,
uma sentença
ela vaticina.
De sua boca sai o destino
de homens e mulheres.
A guru é louca
e a loucura fere.
Mulher loquaz
sem moderação de palavras.
A guru fala muito,
não sabe ser guru.
Condena o logos,
mas é dele escrava.
Pobre guru,
mãe da mediocridade,
rainha solitária.
Usa seu dom
para conceber
e dar à luz
ideias estéreis.
Desperdiça-se.
Sim, a luz é necessária!
É a luz que revela,
não ela.
Quem só olha para a luz,
cega a si próprio
e já não vê,
alucina.
O que a guru diz
não vem da retina
nem do coração,
mas da mente.
É imaginação.
Nenhuma revelação,
nenhum espelho possível
para a guru.
O mundo não comporta mais
uma verdade.
O Homem não suporta mais
tantas certezas.
A guru não percebe o evidente:
a verdade é um aspecto.
E rejeita a filosofia – pena.
Não a rejeitasse saberia a verdade
como um espectro socrático.
Que a guru leia isso como quiser.
A guru, aliás, gosta de leituras,
mas não lê um livro sequer.
Quer ser guru. E só.
Sinto muito, gosto da guru,
mas vou deixá-la.
De agora em diante,
minha mestra é a Ação.
POESIA BRUTA
Quando há tempo de pensar na vida
é que a gente vive.
Vejo a Natureza sendo
e dela participo,
entendo intimamente
o mar se engastando no granito
– estas pedras que já foram,
com a África, a Pangeia.
E percebo que as ilhas são ligadas
pelo mais profundo vínculo
talássico
abissal.
E que o vento nos perspassa
do sopro que move as velas,
os moinhos, as correntes,
a História – até.
Vento do onde, do quando,
do além.
Vento que erode e areja,
que derruba e alça,
que esculpe e arruína.
Medo complacente do sublime.
Esta vida em estado bruto
sem o refinamento inútil,
nem a lapidação do efêmero.
Vida antiquíssima, ancestral,
repetição imemorial do ser-estar
e onde estamos encrustrados,
jazida inesgotável de mobilidades.
Pensar, então, sentir.
Ser, assim, amar.
No tempo de pensar a vida,
redescobre-se o amor latente.
NO DESERTO
Em torno do fogo
os antigos.
Reúnem-se, graves,
a decidir caminhos,
trabalhos, festejos.
Conversa pelo fogo,
olhos crepitantes,
falas em brasas ascendentes.
Em algum canto nosso
há uma fogueira.
Sintamo-la arder!
Consome e acende algo
de vital na gente.
No círculo de fogo,
os homens reunidos,
os sábios concentrados,
conclave ancestral.
Estranha celebração
da tribo humana
em roda ali sentada.
Aquela chama encontrada
ecoa na sombra da noite,
perdida na calada
cegueira da aldeia.
Em cantos os xamãs
nos chamam todos
a contemplar nossos vultos
uns nos outros projetados.
O cântico entoado
no meio do deserto
em meio a lobos,
lagartos e serpentes,
consola as almas melancólicas
como um bálsamo.
Do ventre do pajé
o próprio Verbo se desvelando,
cobrindo aquela noite.
Céu-da-boca celeste
manto de hálito sereno:
– Não falemos de morte,
mesmo que o tempo
revele o destino, a sorte
que nos cabe desde sempre.
Dentre os silvos e uivos,
escuta-se a voz
gutural
vagando no tempo.
Sóbria, simples, suave.
Chão para os desterros.
E, de longe,
o que se via
talvez
fosse o fogo
como um astro
dos incontáveis
no firmamento.
OS OSSOS
Nem só de ideias
nem de ideais
vive o Homem.
Ele carrega consigo
seu próprio esqueleto
arrastando sua ancestralidade
aonde for.
E essa herança
é também um legado:
lembrança estapafúrdia
do fim.
Dentro do Homem,
sustentando-o,
habita o fóssil
de si mesmo.
SALVE-ME
Salve-me daquilo que temo,
não do que desconheço,
mas da ignorância.
Não me salve da dor,
Salve-me do sofrimento.
Salve-me do trágico e do épico.
Da Ilíada,
Da Odisseia.
Salve-me de Dido,
salve-me de Eneias,
salve-me de Ésquilo, Homero, Virgílio.
Só não me salve de Camões.
Salve-me da peripécia
(seja latina, seja da Grécia),
da harmatia e do destino,
mas não me salve (nunca)
de minhas próprias mãos.
Salve-me dos mistérios
entre o céu e a terra.
Salve o meu verso pardo,
salve o meu choro,
salve o meu brado,
salve-me da inveja do Bardo,
e não salve a rainha da Inglaterra.
Salve-me do naufrágio
no mar das certezas,
da solidão da arrogância,
da inação.
Salve-me do que penso.
Salve-me do hermetismo,
da pompa, da verborragia.
Salve-me do eclipse,
da tangente, do seno
e de todo ceno da comunicação.
Da elipse
me salve
da zeugma
do pleonasmo
do hipérbato me salve
da anástrofe
de que tudo que é prolepse
assíndeto
sínquese
silepse
e principalmente chavão.
Salve-me da gramática
e do manual de redação.
Salve-me do certo e do errado,
da crítica e da condenação.
Porque hoje é o dia.
E só hoje.
Sem quaresma,
sem cinzas,
sem folia.
É no hoje que nasço,
que vivo, que morro.
É no hoje que acordo,
que soo
que desperto.
Neste dia que ouso
de tão longe chegar perto.
Salve-me do passado,
salve-me do futuro,
salve-me dos anos e das horas.
Salve-me do tempo.
Salve o agora!
PALAVRA MINHA
Minha paixão
é palavra
minha adição
é palavra
minha doença
é palavra.
A palavra é
minha salvação,
minha rotina e surpresa,
minha ingenuidade,
minha danação.
A palavra é minha
só minha
e de todo mundo
e de ninguém.
A palavra não é
só palavra.
Ela é coisa,
ela move,
ela acolhe,
ela fere,
ela entranha.
Coisa bela
e estranha,
a palavra.
Eu semeio a palavra,
eu a cultivo,
lavro
rego
podo.
Eu a colho, madura,
ao pé da letra.
Com o olho escolho
os frutos seletos,
tateio, provo,
reprovo,
saboreio
o paladar da palavra.
Doce palavra.
Pomar da língua
no quintal do Verbo.
AS CORES
As cores das horas,
as caras coradas,
os mares,
os lares dos olhos,
olhares.
Por todo lado se vê
o viço cromático,
tanta tinta derramada,
esparramada
sem medida.
Acidente colorido,
delírio do Belo.
Opulência para córneas,
pupilas,
retinas,
íris.
A cor é milagre da luz.
A cor é a luz
que dança nos olhos.
O que é chama de vida
e flameja nas coisas
chama-se cor,
vibração da luz
que ressoa na alma
de quem vê.
Ver é traduzir.
Ver, capturar.
Ver: ter para si
o que não é seu,
verter o outro
em eu.
REVELAÇÃO DO HOMEM
Eu sou o templo,
o odre em que descansa
o vinho eternamente novo,
eu tenho asas,
eu mesmo sou
eu mesmo
minha casa.
Eu sou o templo
que consagra
a carne,
eu sou o monte
que transfigura
a carne,
eu sou a carne
para além da carne,
eu sou o cerne.
Em mim o sangue
vivo
lateja
escorre
esvai-se
em mim se sagra
o sangue limpo
o sangue lava
quente
chama
e consome
o que é ímpio.
Eu sou
e estou
contigo.
Sem distinção
eu sou
tudo que é
eu sou o verbo
latente
a conjugação
do ser.
PULSÃO DE MORTE
Pulsão de morte
aqui: bem em mim.
Mal em mim.
Que força potente é esta
que temos,
destrutiva,
tormenta que move,
impele, abate?
Minha mão contundente,
ímpia,
impiedosa.
Minha mão contra mim,
Inimiga,
ambígua,
machuca a própria palma,
estapeia minha face,
esmurra meu estômago.
Estas minha mãos
que já foram de criança,
mãos que clamavam,
mãos que enxugavam lágrimas,
mãozinhas que brincavam.
Estas mãos.
Afastem-me os punhais!
Sou perigoso.
Atento contra mim,
cuidado!
Como posso ter cuidado comigo
se não cuido de mim mesmo?
Medo calado
que espreita,
inadvertido.
Ego incauto e voraz,
inconsequente.
Cego, em tudo capaz,
indiferente.
Este lado sombrio
é meu
e teu
também.
Ele irá nos perseguir
– a nós, sóbrios,
a nós, prudentes
bem formados
e independentes –
como uma sombra
insistente e tenaz,
está em nós como um cancro
incurável
uma cisão
uma falta
um recorte.
Ela,
nossa condição.
Ela,
pulsão de morte.
BILHETE DE UM SUICIDA
Estamos doentes,
um remédio, doutor.
Somos incuráveis,
mais morfina, por favor.
O corpo que temos é pouco,
é quase sem corpo,
a carne em tremor.
O pulso é sem força,
o peito, sem cor.
Demos todo sangue
em prol de progresso,
fama, sucesso,
mas só o que temos
somos nós mesmos,
sempre.
E hoje nos perdemos,
há muito,
no esquecimento,
no devaneio,
na omissão de nossas vidas.
Somos uns chatos
na vida dos saudáveis.
Socorro.
Vida vazia.
Fuga da confusão
turbulenta.
Estou me desligando
do mundo.
Estou por um fio.
Sinto calor e frio
ao mesmo tempo.
Doutor,
há cura?
Injeta qualquer coisa na veia!
Me faz sumir, doutor.
Me dissolve em algum infinito.
Me extirpa isso logo,
me arranca de mim,
doutor!
Me anima,
me reanima,
me mata…
mas me ressuscita.
Me ressuscita, doutor.
Porque o que eu quero
é tão somente
viver.
ETERNO RETORNO
Há atividade no deserto
sob a areia que torra e esfola.
Há felicidade no exílio,
à sombra do desterro.
Há cumplicidade no ostracismo
– voluntário que seja.
Há medo no aconchego
e tristeza no banquete,
um desejo pela morte,
e alívio na desgraça alheia.
Há até má fé no dó
e prazer na dor
e gozo no estar só,
e pode haver mal no bem que concebemos.
Mas não existe a menor possibilidade
de voltar no tempo
nem desfazer um rumo
sem o percorrer de novo
com outro sentido.
O eterno retorno
ronda à espreita.
Vamos chamá-lo,
tenha certeza.
Vamos desejar
nosso bem ou nosso mal,
você sabe.
Será nossa dor.
Porque a dor é da vida,
amigos,
mas o sofrimento é opção.
Nas certezas da vida
há sempre um senão.
E o sentido da vida existe:
ela só corre numa mão.
Em frente, em frente.
Sempre.
DESAFORISMO
No começo, o gosto:
Páprica na boca
picante lascívia
beijo travado
na ponta da língua.
Dangerous love
libertine
it’s also a sheep
you sleep with.
Coisa tardia surge
assim do nada
irrelevância que urge
na cútis cifrada.
Tendões do acaso
repuxam o amor,
entrega retida
imóvel temor.
Love me
leave me
let it
go.
Então um tempo
nem tanto intenso,
um dardo tenso
estanca o intento
e o momento denso
se dissipa assim.
O esboço, o storm
é passado a limpo
letra a letra
por extenso.
A limpeza estéril
é um sonho que arrefece
uma falta que atormenta.
Como um contorno
do cotidiano
silhueta em manto
a cobrir o lustro
a formar um lastro
a fazer um gasto
a deixar um custo:
consumir o apreço
e amargar desgosto.
INCONFESSÁVEL
Quando brinquei de deus,
foi que matei pessoas
que me imploraram a vida,
e manipulei povos na miséria,
e destruí em massa,
devastando terras e cidades,
contemplando as cinzas
do cume das montanhas.
Eu brinquei de deus
e persuadi os outros
à ganância,
ao ódio cego,
à ignorância
e à demência.
Eu gargalhava enquanto via
plácido
crianças agonizando
no solo seco
abortadas,
e velhas se esgarçando
decompostas
à minha espera.
Reduzi tudo a pó
– retornei tudo à origem, ora!
Não fui um deus,
mas um escravo
um verme escroto
ávido por poder.
O Poder!
Eu me lambuzei como um porco
no lodo pútrido do poder.
Lascivo, luxuriante, imundo,
um animal primitivo
ensebado em sangue viscoso
que se embrenhava devorando
devasso
aquela víscera ainda viva
latejante e quente
do Poder.
Abominável e abjeto ser
Parasitado pelo poder.
Esse fui eu.
Que deus eu fui
quando assim brinquei?
Não me levem a sério,
pois não sou um homem
como vocês outros.
Não sou nem um homem
e ainda assim brinquei de deus.
Hoje sou nada
como antes.
Mas silêncio!
Antes que me perguntem,
não sei explicar.
Não cometi um erro,
muito menos um acerto.
Eu só brinquei
de algo inconfessável.
BREVIDADE
O eu infalível
fora do limite,
o eu que não existe,
eu impossível.
Não vou dar valor à falta.
Tenho um corpo, veja.
Toque-me: é disso que sou feito.
Este volume, este peso, esta pele.
Eis-me.
Nem mais, nem menos, o mesmo.
O que sou agora.
É sempre no agora meu tempo
– até deixar de ser.
Então no quando eu não houver,
leia esta página e lembre-se.
E rasgue o corpo dessas ideias.
Será o confete para celebrar
que agora você vive,
ainda que ainda.
Lance no ar e celebre
a vida breve.
O ANJO
Ganhei o céu
e do alto alcei
um voo raso
sobre a humanidade.
Asas são como pés descalços
há liberdade e dor
e tropeços.
Sou falível como tu.
Meu sangue corre
e também escorre
para o chão.
A gravidade nos atinge,
somos irmãos.
Nossos destinos são um só:
a queda.
Para baixo
para baixo
para baixo.
Vertigem do salto
mergulho para onde?
Não chore agora.
Ainda espero por você no meu céu.
O mesmo céu tecido
por belos pássaros
suaves ou em chamas.
O azul límpido é falácia,
construa seus sonhos no mar,
ele sim verdadeiro,
cruel, vasto, mas finito
o mar esse estranho conhecido
entidade perdida
permeada de presenças.
Não é como o céu longínquo
e abstrato.
Tanto ar provoca angústia
e desamparo.
O céu não acolhe
e sou dissipado
pelas coisas que não sei.
Há tantas
tantas coisas que não sei.
Saberei um dia?
Quem sabe…
Tanto céu assim nos esvazia.
Prefiro então o mar
que me preenche as lacunas
e me afoga em seu denso acalento.
Sei, depois,
emergir urgente
e respirar afoito
o alento pleno do mistério.
Assim a vida.
Sigo náufrago
de algo há muito perdido,
mas, confiante na maré,
boio entre o céu e as profundezas.
Aceito o vento
e sigo.