TERÇA À TARDE

Vou te carregar como um fardo
em meus ombros nem tão fortes,
vou te levar como as canções chatas
que não saem da cabeça de bom grado,
te trazer marcada na pele
– fronteira entre mim e o mundo –
não como inesperada cicatriz,
mas como tatuagem voluntária,
onde não consiga te ver sem um espelho.
E vou.
Vou seguir
sem você, mas
com a tua presença
me lembrando um incômodo
ou menos, um memória apenas,
um princípio diluído inocuamente,
talvez um soro contra tudo
que não foi perdoado.
Arrisco dizer que – breve? tarde? –
você passará
e não passará
de uma breve tarde
nublada e esquecida
nesta semana passageira
que é a vida.

AFRODITE

Nasci de um assassínio,
poder castrado.
Assassinata.
Do sangue casto que pingava
eu me coagulei, pura
apesar da ira da vingança.
Nasci mulher, não fui criança.
Meu parto foi no mar,
as contrações em ondas.
Espuma, sangue, água.
Pérola de carne
macia, molhada.
Eu sou a concha do prazer,
você me quer.
Bem me quer.
Mal me quer.
Eu sou a virgem deflorada.
Qualquer um me quer,
não sou mulher,
sou a Beleza encarnada,
uma deusa mal dita,
de pureza interdita.
Euforia inaudita.
Afrodite.
Inflamação de amor,
paixão – no sentido cru da palavra.
Evoca minha presença e ama!
Me chama no arrepio da pele
e goza as delícias do corpo vigoroso,
vem!
Sem
a minha bênção
tua vida é só pena.
Oferece a tua carne
em sacrifício.
Eu sou a deusa honesta,
a única a lembrar
que viver é o que te resta.

ETÉRICO

Eu sou, sei lá, feito de nuvem
de um sonho poroso
aéreo
volátil.
Vou ao vento.
Volante.
No acúmulo esparso que sou,
vivo no nimbo,
sorrindo
abstrato.
Estrato
de lembranças e desejos.

Não se guie por mim,
não sou nenhum norte.
Não me desafie,
não sou serafim
sou forte
não fraquejo
e se me falta algum traquejo
voo disperso e me afasto
relampejo
contra tanta gente
infame e nefasta.

Eu me precipito sem ser visto
no horizonte latente da estrada,
onde o céu se descortina
oculto e presente
e o que há à frente
é só fronteira e possibilidade.
E assim
próximo ao fim
eu me descarrego
suave e potente
no ciclo
e de novo
e de novo.

Este sou eu, pasme.
Que no seu espanto
já não haja pranto:
abrigue-se
ou saia
perfumada
pra rua
e deixe
a chuva
te beijar.

PRÓDIGO

Por mais longe que seja o destino,
há um caminho de volta
e uma paisagem para ser apreciada
do alto da montanha inóspita.
Um jovem andante vaga sem rumo,
seu destino é errar.
E assim ele segue.
Cego por suas certezas,
tem pedras nos bolsos.
Ninguém lhe importa e tudo lhe interessa.
Em sua ingenuidade perversa,
o mundo lhe pertence.
O que não é seu, ele toma,
saqueia sem cerimônia
e leva consigo uma parte dos outros,
como se conseguisse mesmo tal façanha
– isso de possuir o que não é seu por conquista.
Em volta, um rastro de sua insensatez:
lágrimas, dor, mágoa
enquanto ele ostenta, inconsequente,
com peito aprumado
uma nobre e falsa altivez.
Mas depois de afastar seus afetos
e ficar isolado, roto, triste,
o convívio com a imundície
feriu-lhe o orgulho.
Como um verme, o mundo lhe pisou,
a vida foi atroz e certeira
numa lição cruel e ao mesmo tempo bela.
Da cela do ego, o céu despontou
com brilho intenso
o amor dissipou o ranço da discórdia
e todo aquele rancor estagnado.
A porta da casa estará sempre aberta
ao jovem que deixou para trás seus entes.
Um pai resignado lamuria
por entre os dentes,
mas há festa pela volta.
Adornos à volta do jardim
onde as flores e as pragas
convivem em meio à beleza serena
e ao cuidado.
A morte está presente
como adubo, apenas.
Espinhos, pétalas,
risos e penas
crescem juntos
em frente ao lar.
Aquele mesmo lar.
Seja bem-vindo
novamente.

NA VARANDA

Sentada na varanda
Regina se deixou levar
pelo hálito da montanha
e a eletricidade no ar.
Ela reparou – veja só –
que há dança nas coisas.

– Não, não há dança nelas!
São dança elas mesmas,
comenta pela janela,
por entre uma rosa seca
e um cravo que viceja.

– Se já não sou como era,
ainda danço, veja.
Estava leve, ela,
na varanda,
como folha que voeja.

Regina olhava o céu
como quem conseguisse
ver o próprio tempo.
O balé da vida estava em seus olhos,
eu via.

Os pássaros, as palmas, a chuva.
E assim Regina deixou a varanda
para integrar a paisagem.

Da janela nós a vemos como a banda
de passagem
contando coisas de amor.

DO DESAPEGO

Aviso: comece já seu desapego
Mais um apelo neste mundo de apelos,
verdade.
Não ligue para isso, aproveite
enquanto há viço e deleite,
vida, dádiva.
É bem difícil abrir mão assim
dizer não ao sim constante
e ser cortante e suave.
Abra mão, então, deixe.
Zelo e cautela são carícias e aconchego,
proteção não é segurança
e enquanto a mão ávida
agarra todo bem,
o pé desapegado dança
sobre a terra nua.
Terra que é minha,
terra que é tua,
de ontem, hoje e além
terra de todos nós
e ninguém.
Desapego sem esforço,
sem ego.
Entrega
como na expiração.
Suspiro
de aceitação.

MANHÃ CHUVOSA DE UM SÁBADO QUALQUER

Minha total inaptidão
se esgueira nas sarjetas.
Por quê? – pergunto enquanto olho
as pessoas passando
os carros passando
a vida passando.
É ridículo, percebo.
Pergunto a quem, meu Deus?
Por quê, o quê?
Coisa mais sem sentido
perguntar isso assim…
Total inaptidão.
E ela se esgueira nas sarjetas
ou nas beiras das sacadas
de sobrados sombrios e encardidos.
Incapaz, meu rapaz.
As coisas todas assim
como inimigas urrando.
Versos não farão
a vida melhor
– lembre-se.
Podem ajudar a ruminar
a esquecer
a transgredir.
Melhorar, jamais.
Logo eu que sempre dizia
“nunca diga jamais”.
Enquanto isso assisto ao show
de luzes e sirenes
refletindo e ecoando nos prédios vazios
do centro da cidade
(minha cidade que migrou de si,
periferia erma de folias)

A CASA DA AVÓ

Na ladeira de pedras centenárias
banhada do suor de mil escravos,
em meio ao casario sóbrio
de paredes encardidas por um pó
antigo como o tempo,
está a casa da avó.

Em Minas, as famílias se encrustam
por gerações e gerações,
são a riqueza maior da gente
humilde e digna,
delicadeza bruta
que só o mineiro tem.

A avó está na sala, sentada,
apoiada na bengala de madeira escura,
junto aos móveis austeros
e à prataria enegrecida.
E lá fora a cidade peleja calma
no andor de quem palmilha
vagamente estradas pedregosas.

Lá fora, a cidade vela a casa da avó,
as senhorinhas nas janelas,
a torre da matriz,
a revoada dos pássaros,
os homens de chapéu.
Lá fora há um vazio
promissor de coisas,
de bênçãos, por certo
– afinal, estamos em Minas.
Lá fora, há um mundo vasto,
de mistério,
invisível aos nossos olhos,
que param nas montanhas de minério.
Lá fora, a avó tem a salvaguarda
de Carlos e Adélias.
Lá fora é Minas
e Minas, no fundo, também é a casa da avó.

LIVRO

Queria me ver livre das páginas amareladas
e de todo cheiro de conhecimento novo
em forma de pó.
A embarcação de papel me leva
ao mundo abstrato de imagens em ação,
mundo leve de formas pesadas.

E a concretude se desdobra em sonho,
o onírico se esvai em letras…
a multiplicidade latente de sentidos
altera-se em lápides esculpidas à mão,
unilaterando todo um universo.
Literatura.
Lápis em punho destruindo em signos
o insignificável.

Fui moldado às folhas mil,
minha capa dura não se dobra, move-se
apenas o suficiente para abrir caminho
a uma tênue cicatriz de ideias.
Folhas falhas, filhas de um sentimento fútil
de aprisionar palavras, antes
pensamentos, folias…
Fui moldado e sou retangular.
Reta angular. Tijolo.
Paralelepipedada
na vidraça do ser.