Quem fala quando
no poema eu escrevo
e quando escrevo “eu”?
Que eu é esse que se diz
alguém
que desconheço?
Que se faz de mim
mesmo não sendo
eu que não sou
mas que é mais
do que posso.
Ele é eu
e não sou eu
que o sou.
Lúcido,
Rimbaud falou
sem estar louco:
este eu aqui não é ele
nem eu, porque
eu é um outro.
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VERSIDADE
Como ser um poeta do silêncio
e escrever com o vazio?
Na arte, a escrita logo foge
pra mata do sentimento,
onde não há trilhas asfaltadas
de compreensão.
Ela parte do deserto,
mas se abriga na selva
densa, cerrada,
é palavra-curupira
com seus pés contrários,
palavra-saci caminhando aos saltos,
palavra-iara
submersa na água clara.
Procurá-la do alto
é não achar, na certa.
Vá pro chão explorar,
desbravar a terra
– não como bandeirante,
mas suave como um caboclo,
sagaz e simples como um mateiro.
A palavra exala úmida e fresca,
seu cheiro é forte e gostoso,
não a comeremos,
saberemos a sua presença
sem a tocar
e, com o tempo,
pode ser
que chova em nós.
CUIDADO
Cuidar não é expor, mas
notar o outro e acolher
e dividir a atenção
e a refeição com a colher
e repartir com a mão,
a mesma mão de estender
e ajudar a se erguer.
Cuidar é sobre ouvir,
saber ouvir e calar
para melhor atentar.
Mas atenção:
o atentar aqui não é contra,
é o de consideração
(é sempre bom lembrar).
O abraço fraterno do cuidado
dispensa o terno engomado
do autoengano da titulação.
A excelência acadêmica de valor
dispensa a polêmica que for
e se faz samaritana por missão:
doutor só quem souber sanar a dor.
Cuidar também do falar
pois a boca para além
de beijar, cantar, sorrir
há de sempre o Bem proferir,
porque a fala é faca afiada
e se usada como espada,
é certo que o erro vá ferir.
Que da boca saia
acalento e bênção.
E que fique claro
que ao cuidado é caro
aprender com zelo
a maior lição do curso:
cuidado é ação, não discurso.
Coagir não é agir junto
– apesar do prefixo.
É como a diferença
entre o cordeiro e o lobo
que traja sua pele.
Não basta usar crucifixo,
é preciso ter a marca que impele
à suave ação, paciência
sem impor o jugo, violência
do saber cuidar, sapiência.
PERTO DO QUE SOU
Sou como um corcel em carne viva,
corro para não sentir queimar o meu fulgor.
Tenho pernas que trotam para longe
porque é longe onde me encontro perto do que sou.
Maldito pelas bocas de muitos,
não as que beijei
nem as que comigo conversaram,
mas por todas que proferem maldades,
por aqueles que preferem insultar e ranger os dentes.
Maldito por quem cospe veneno
e não me aceita, não me engole.
Fico atravessado nas gargantas e nas ruas,
habitante das sarjetas e periferias,
convivo com os imundos, impuros, renegados.
É com eles que me afirmo e não lamento,
é deles a voz que dá alento
e sentido ao meu canto belo
e sofrido,
à minha dança leve
e dolorida.
Convoco agora a escória reluzente
em seus talentos e brios,
os vagabundos, as prostitutas,
viados, putas e seus filhos,
os favelados e os indigentes,
quem for canhoto, comigo venha
neste movimento.
Malditos e humanos somos.
Bendita gente.
SALVE
Salve-me daquilo que temo,
não do que desconheço,
mas da ignorância.
Não me salve da dor,
salve-me do sofrimento.
Salve-me do trágico e do épico.
Da Ilíada,
da Odisseia.
Salve-me de Dido,
salve-me de Eneias,
salve-me de Ésquilo, Homero, Virgílio.
Só não me salve de Camões.
Salve-me da peripécia
(seja latina, seja da Grécia),
da hamartia e do destino,
mas não me salve (nunca)
de minhas próprias mãos.
Salve-me dos mistérios
entre o céu e a terra.
Salve o meu verso pardo,
salve o meu choro,
salve o meu brado,
salve-me da inveja do Bardo,
e não salve a rainha da Inglaterra.
Salve-me do naufrágio
no mar das certezas,
da solidão da arrogância,
da inação.
Salve-me do que penso.
Salve-me do hermetismo,
da pompa, da verborragia.
Salve-me do eclipse,
da tangente, do seno
e de todo ceno da comunicação.
Da elipse
me salve
da zeugma
do pleonasmo
do hipérbato me salve
da anástrofe
de que tudo que é prolepse
assíndeto
sínquise
silepse
e principalmente chavão.
Salve-me da gramática
e do manual de redação.
Salve-me do certo e do errado,
da crítica e da condenação.
Porque hoje é o dia.
E só hoje.
Sem quaresma,
sem cinzas,
sem folia.
É no hoje que nasço,
que vivo, que morro.
É no hoje que acordo,
que soo
que desperto.
Neste dia que ouso
de tão longe chegar perto.
Salve-me do passado,
salve-me do futuro,
salve-me dos anos e das horas.
Salve-me do tempo.
Salve o agora!
BREVIDADE
O eu infalível
fora do limite,
o eu que não existe,
eu impossível.
Não vou dar valor à falta.
Tenho um corpo, veja.
Toque-me: é disso que sou feito.
Este volume, este peso, esta pele.
Eis-me.
Nem mais, nem menos, o mesmo.
O que sou agora.
É sempre no agora meu tempo
– até deixar de ser.
Então no quando eu não houver,
leia esta página e lembre-se.
E rasgue o corpo dessas ideias.
Será o confete para celebrar
que agora você vive,
ainda que ainda.
Lance no ar e celebre
a vida breve.
ETERNO RETORNO
Há atividade no deserto
sob a areia que torra e esfola.
Há felicidade no exílio,
à sombra do desterro.
Há cumplicidade no ostracismo
– voluntário que seja.
Há medo no aconchego
e tristeza no banquete,
um desejo pela morte,
e alívio na desgraça alheia.
Há até má fé no dó
e prazer na dor
e gozo no estar só,
e pode haver mal no bem que concebemos.
Mas não existe a menor possibilidade
de voltar no tempo
nem desfazer um rumo
sem o percorrer de novo
com outro sentido.
O eterno retorno
ronda à espreita.
Vamos chamá-lo,
tenha certeza.
Vamos desejar
nosso bem ou nosso mal,
você sabe.
Será nossa dor.
Porque a dor é da vida,
amigos,
mas o sofrimento é opção.
Nas certezas da vida
há sempre um senão.
E o sentido da vida existe:
ela só corre numa mão.
Em frente, em frente.
Sempre.
ABRE-ALAS
O que seria a vida sem os atavios?
Eu amo os adornos e seus contornos.
De beleza é que me remendo.
Tal beleza eu recomendo,
de formas me preencho…
E se a barbárie rondar
e desfiar-me em desafios,
ao desalinho não há lugar em meu tecido.
Posso adentrar em sua casa e encanto levar
O meu brilho vai atacar seus olhares
Prometo não roubar a cena.
Meu paetê pode ofuscar seu ego
mas e daí? não nego
A alegria é de contagiar!
É, simplesmente assim!
(criado com Bruno Black, 2020)
DE/PARA
De onde sou me define?
De onde venho me definha
ou me fortalece?
Pra onde quero ir
Me espelha
Pra onde devo ir
Me concretiza?
O que eu sou não nego.
E sigo em frente, uno.
Porque o amor é cego
mas não divide.
O que eu amo eu desejo
É não abandono
Porque sou intenso
Mas não inconsequente.
Só sigo em frente.
(criado com Bruno Black, 2020)
CETTE DANSE
(para Renato Vieira)
O que meus olhos veem,
meus pés dançam.
Trago pupilas em meu coração.
O que é mau, não vejo
sei que existe, mas nem
quero saber
e beijo o bem
que me move,
não só com lábios,
mas com todos os sentidos
despertos.
Eu danço para estar junto,
estar perto
de tudo aquilo que amo,
de tudo isto que sou.
Dancemos
não para esquecer, mas celebrar o risco
e lembrar que somos
este corpo, este tempo, este grito
sussurrado entre zilhões de estrelas.
Dancemos para celebrar o pó
e sacudir o pó
e relembrar quão sós
estamos entre zilhões de estrelas.
Dancemos para sermos
pois somos enquanto há dança!