PERTO DO QUE SOU

Sou como um corcel em carne viva,
corro para não sentir queimar o meu fulgor.
Tenho pernas que trotam para longe
porque é longe onde me encontro perto do que sou.

Maldito pelas bocas de muitos,
não as que beijei
nem as que comigo conversaram,
mas por todas que proferem maldades,
por aqueles que preferem insultar e ranger os dentes.
Maldito por quem cospe veneno
e não me aceita, não me engole.

Fico atravessado nas gargantas e nas ruas,
habitante das sarjetas e periferias,
convivo com os imundos, impuros, renegados.
É com eles que me afirmo e não lamento,
é deles a voz que dá alento
e sentido ao meu canto belo
e sofrido,
à minha dança leve
e dolorida.

Convoco agora a escória reluzente
em seus talentos e brios,
os vagabundos, as prostitutas,
viados, putas e seus filhos,
os favelados e os indigentes,
quem for canhoto, comigo venha
neste movimento.
Malditos e humanos somos.
Bendita gente.

SALVE

Salve-me daquilo que temo,
não do que desconheço,
mas da ignorância.
Não me salve da dor,
salve-me do sofrimento.
Salve-me do trágico e do épico.
Da Ilíada,
da Odisseia.
Salve-me de Dido,
salve-me de Eneias,
salve-me de Ésquilo, Homero, Virgílio.
Só não me salve de Camões.
Salve-me da peripécia
(seja latina, seja da Grécia),
da hamartia e do destino,
mas não me salve (nunca)
de minhas próprias mãos.
Salve-me dos mistérios
entre o céu e a terra.
Salve o meu verso pardo,
salve o meu choro,
salve o meu brado,
salve-me da inveja do Bardo,
e não salve a rainha da Inglaterra.

Salve-me do naufrágio
no mar das certezas,
da solidão da arrogância,
da inação.
Salve-me do que penso.

Salve-me do hermetismo,
da pompa, da verborragia.
Salve-me do eclipse,
da tangente, do seno
e de todo ceno da comunicação.
Da elipse
me salve
da zeugma
do pleonasmo
do hipérbato me salve
da anástrofe
de que tudo que é prolepse
assíndeto
sínquise
silepse
e principalmente chavão.
Salve-me da gramática
e do manual de redação.
Salve-me do certo e do errado,
da crítica e da condenação.

Porque hoje é o dia.
E só hoje.
Sem quaresma,
sem cinzas,
sem folia.
É no hoje que nasço,
que vivo, que morro.
É no hoje que acordo,
que soo
que desperto.
Neste dia que ouso
de tão longe chegar perto.
Salve-me do passado,
salve-me do futuro,
salve-me dos anos e das horas.
Salve-me do tempo.
Salve o agora!